terça-feira, 27 de julho de 2010

Da Janela... uma perspectiva da realidade.

Gosto de observar. Observar é sair um pouco de si, descentralizar nossa atenção e endereçá-la a algo que não pertence ao nosso cotidiano, às nossas lutas, à nossa limitada realidade.

Fui almoçar no shopping outro dia. Como de costume, servi meu prato e me dirigi para a área mais iluminada – por luz natural, ressalvo. Onde o shopping parece menos shopping, onde é possível observar, através de largos vidros, a rua, as pessoas que passam, os outdoors, os carros. Onde me viro de costas ao apelo constante das vitrinas bem arrumadas, dos odores e cores de um mundo controlado. É como observar o mundo de camarote.

Mas, naquele dia, o que me chamou a atenção estava a poucos centímetros de mim: na mesa ao lado da minha, uma bandeja com um prato que continha uma boa porção de arroz, uma menor porção de batatas à moda alemã, um frango grelhado e um único brócolis, colorindo de verde aquele prato tão “nude”, aliviando a culpa de quem fez escolhas tão monocromáticas. Afinal, comer bem é comer colorido. Os talheres, em posição de uso, arrumados um de cada lado do prato, dentro da bandeja. E um copo com refrigerante de máquina. Tudo sem tocar. Pronto pra ser consumido. Mas, não havia consumidor.

Comecei minha refeição e me dei conta que aquela refeição permanecia ali, intocada, reservando uma mesa para ninguém, esfriando-se rapidamente, como rapidamente deve ter saído dali aquele que se preparou para degustá-la. Ninguém se atrevia a tocá-la. Ficou ali, durante todo o tempo em que eu permaneci naquela mesa do shopping.

E eu, me desliguei dos meus problemas, das minhas tarefas, do meu relógio, da minha agenda, pra olhar aquele prato e ficar imaginando que tipo de evento, de ocorrência, faria alguém largar assim o prato feito, a fome em suspenso (ou cancelada), a hora do descanso intermediário? Pensei com pesar na sorte daquele indivíduo. Me compadeci da sua angústia, mesmo sem saber qual era.

Há poucos minutos, olho pela janela de meu aquecido escritório, nessa tarde ensolarada, porém muito fria, e vejo uma cena triste: uma carroça, com um cavalo velho, magro, sofrido, parada do outro lado da rua. Os animais sempre me emocionam, porque imagino que é obrigação dos humanos, cuidar deles. Não por altruísmo. Simplesmente porque os retiramos de seu ambiente natural e lhes negamos o direito de buscar sobrevivência por conta própria. Caçar, buscar alimento, buscar água, buscar abrigo, buscar calor, nada disso pode um cavalo amarrado à uma carroça, subjugado às ordens de seu dono. Então, é dever do dono prover ao cavalo tudo o que ele merece e poderia conseguir por meios próprios, estando entre os seus, em seu ambiente.

Mas aí, apuro o olhar e o que vejo é mais deprimente que o próprio animal: vejo duas mulheres sujas, maltrapilhas, desgrenhadas, porém jovens, remexendo no lixo para buscar subsistência. Como dar aquilo que não temos? Como prover sem ter sequer pra si?

De certa forma, me sinto responsável. Me sinto envergonhada em viver em um mundo onde animais são subjugados, mas ainda mais cruelmente envergonhada, de viver em um mundo que subjuga seres humanos, para que outros possam ter o que NÃO PRECISAM!

Que vidas levam essas mulheres? Onde vivem tem saneamento básico? Passam frio nessas noites de inverno rigoroso? Elas podem sonhar com um futuro pra si? Tem filhos? Como eles são criados? Tem para eles alguma esperança de ultrapassar as barreiras das classes sociais e ascender? Por que meios?

Sinto-me conivente com o modo de vida que permite que isso aconteça, quando me isolo em shoppings, em aviões, em edifícios, olhando o mundo por vidraças, e não uso a minha capacidade de emocionar, de formar opinião, para denunciar essa forma de sociedade, onde se considera aceitável que pessoas vivam nessas condições.

Compadeço-me da minha raça, quando percebo que pares meus nem percebem essas distorções, ou ainda pior, se colocam em posição de altiva superioridade, evidenciando sérias falhas de caráter, ao cruzar com essas pessoas e aceitando como normal essa discriminação por classes.

Algumas vezes, ao ser abordada por um pedinte, em algum semáforo, ao fitar nos olhos e responder educadamente ao pedido, mesmo nada doando, fui criticada por “falar” com essas pessoas, por não ignorar ou “fechar a cara”.

Uma vez em viagem ao Peru, quando ainda vivia no Chile, o distribuidor com quem eu negociava, enviou um carro com motorista para apanhar-me no aeroporto. Gosto de gente. Me interesso pelas suas histórias, suas vidas. E o percurso era longo. Puxei assunto. O motorista me respondia constrangido. Senti que estava incomodado com minha conversa, e parei imediatamente de conversar.

Ao perguntar ao filho do Senador – meu distribuidor, o motivo de tal constrangimento, ele não teve dúvidas em responder: não falamos com subalternos. Estão aqui para executar um serviço e só lhes dirigimos a palavra para dar ordens.

Conto isso para dizer que não é privilégio brasileiro, esse comportamento que ignora ou usa outros seres humanos para a manutenção de nosso estilo de vida. Como se brincássemos ainda, depois de adultos, de “faz-de-conta”. Faz-de-conta que ele não está ali que ele some. Faz-de-conta que ele não é gente, é um objeto, um artigo programado para nos obedecer.

Esses contatos com essas outras realidades sempre me deixam constrangidas. Não pelas conquistas materiais que adquiri ao longo de minha vida. Todas elas foram e são ainda muito batalhadas. Não sou milionária, nem vivo em condição de luxo. Vim ao mundo a trabalho. Minhas maiores conquistas são morais. Quem convive comigo, sabe disso.

E justamente pela consciência do certo e errado que carrego comigo, me questiono se há algo que eu possa fazer, na minha vida cotidiana, para um dia poder olhar pela janela e não mais enxergar seres humanos em posição de inferioridade social, sem saída ou escapatória, que, em conseqüência, maltratam animais, subjugando os ainda mais inferiores que eles próprios.

Quem sabe, repartindo meu olhar do mundo com outras pessoas, possa transformar essa dor moral em algo positivo. Como aquelas senhoras catando o lixo que eu produzi, são agentes de transformação do feio e sujo em algo outra vez belo e utilizável. Eu as vi. Não brinco de “faz-de-conta” com seres humanos, nem com animais, nem com qualquer ser vivo. E você?

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu também vejo. Quem sabe um dia poderemos ver as coisas acontecerem diferentes. tenho esperanças.