sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Uruguai como reduto cultural - Moacyr Scliar

Não é preciso dizer que o RS tem muito em comum com o Uruguai: o pampa, a criação do gado, a cultura gaúcha - e, claro, boa parte de nossa história. Mas além disso há um outro e importante aspecto, muito valorizado por minha geração: o Uruguai é uma referência cultural. Para começar, e apesar das reduzidas dimensões e da população relativamente pequena, o Uruguai tem uma literatura pujante, graças a nomes como o Lautréamont, Horacio Quiroga, José Henrique Rodó, Felisberto Hernández, Mario Benedetti, Eduardo Galeano. Esses autores são muito conhecidos entre nós, em grande parte graças ao trabalho do escritor Sergio Faraco, que, magistralmente, traduziu vários deles para o português. É uma literatura de um vigor extraordinário e que, para os gaúchos, soa muito familiar. E esta literatura, por sua vez, reflete a cultura geral dos uruguaios, um país de gente letrada e sofisticada.

Mas não é só a literatura, não são só as livrarias. É também o teatro, a música e, mais recentemente, o cinema, através de filmes como o comovente O banheiro do Papa (2007), narrando a história de um homem que pensa em ganhar algum dinheiro construindo um banheiro para os turistas que viriam à cidade de Melo, quando da visita do Papa João Paulo II, em 1988; Coração de Fogo (2002), melhor longa latino-americano no Festival de Gramado; Whisky (2004), premiado em numerosos festivais internacionais.

Viajar para Montevidéu, para comprar livros, assistir a concertos e peças de teatro, almoçar (lautamente) no Mercado, era um programa habitual durante minha adolescência porto-alegrense. E relativamente fácil de fazer: a gente tomava um ônibus, bastante confortável, viajávamos toda a noite e de manhã estávamos na capital uruguaia. Ficávamos em algum hotel antigo, mas limpo e barato, e aí, dê-lhe cultura. Houve uma época em que empresas de turismo criaram um programa especial: era a excursão "Laranja Mecânica". Por que esse estranho nome? Simples: a censura brasileira tinha, por razões que até hoje parecem misteriosas, vetado o filme de Stanley Kubrick, baseado em um romance do inglês Anthony Burgess e que logo se tornou uma obra cult. No Uruguai ela podia ser vista sem problemas, e isso atraía não só os cinéfilos como as pessoas em geral. Ou seja: a burrice da censura fazia com que a gente gastasse dinheiro no exterior (ainda que o Uruguai não seja exatamente exterior).

O tempo passou, mas o Uruguai continua nos atraindo. É uma magia que, vamos reconhecer, desafia o tempo.
-----Texto do escritor Moacyr Scliar, publicado na revista Bens & Serviços/Fevereiro 2010/Edição 58, página 50, da Fecomércio-RS.

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